Contamos em um artigo recente a história da instituição da festa litúrgica do Corpo de Cristo.
Em tempos pretéritos, este II Domingo depois de Pentecostes estaria dentro da oitava (dentro dos oito dias consecutivos que se celebra a mesma festa).
O Evangelho para esse Domingo é chamado de “Homo quidam”, pois estas são as primeiras palavras do Salvador na parábola, e que em latim significam “certo homem”:
"Homo quidam fecit cœnam magnam, et vocávit multos. Et misit servum suum hora cœnæ dícere invitátis, ut venírent, quia jam paráta sunt ómnia” etc.
Certo homem fez uma grande ceia, e chamou muitos. E enviou seu servo à hora da ceia para dizer aos convidados que viessem, porque tudo estava preparado. E começaram todos igualmente a se escusar. O primeiro disse a ele: comprei um campo, e tenho necessidade de sair para vê-lo; rogo que me tenhas por escusado. E outro disse: Comprei cinco juntas de bois e preciso prová-las; rogo que me tenhas por escusado. E outro disse: tomei uma esposa, e por isso não posso ir. E voltando o servo, anunciou essas coisas ao seu senhor. Então, irado o pai de família, disse ao seu servo: sai depressa pelas praças e ruas da cidade, e conduz para aqui os pobres, os débeis, os cegos e os claudicantes. E disse o servo: Senhor, fiz o que me mandastes e ainda há lugar. Respondeu o Senhor ao servo: "Sai pelos caminhos e valados e compele-os a entrar, para que fique cheia a minha casa. Eu vos digo que nenhum do que haviam sido chamados provará a minha ceia." (Lc 14, 16-24).
Nosso Senhor acabara de ensinar a preparar nossas festas para aqueles que não podem nos retribuir (os pobres), pois receberíamos nossa recompensa na ressurreição dos justos.
Alguém então, supondo que a ressurreição dos justos fosse uma e a mesma coisa que o Reino de Deus, elogia essa recompensa mencionada: “Ora, ouvindo isso, um dos que estavam à mesa disse-lhe: 'Bem-aventurado o que comer pão no Reino de Deus’.”
Aquele homem, diz São Cirilo, era carnal, pois pensava que a recompensa dos santos fosse material.
Nosso Senhor, então, por meio da parábola, condena a insensibilidade desse homem como indigna do banquete celestial.
Esse homem, diz São Cirilo, representa Deus Pai, pois sempre que Deus deseja declarar Seu poder vingador, é chamado pelos nomes de urso, leopardo, leão e outros semelhantes; mas quando deseja expressar misericórdia, é chamado de homem.
O Criador de todas as coisas, portanto, e Pai da Glória, o Senhor, preparou a grande ceia, que foi realizada em Cristo, pois ele deu-nos Seu próprio Corpo para comer. Por isso também o cordeiro era sacrificado à tarde segundo a Lei mosaica (significando também a demora na história para a vinda do banquete do Cordeiro de Deus). Com razão, pois, foi chamado de grande ceia o banquete preparado em Cristo.
Ele convidou muitos, mas poucos vieram, pois às vezes os que a Ele se submetem pela fé, por suas vidas se opõem a Seu banquete eterno, explica São Gregório Magno.
E essa é geralmente a diferença entre os prazeres da carne e os da alma: os prazeres carnais, quando não possuídos, provocam forte desejo, mas quando possuídos e consumidos, o que os come logo passa da saciedade ao enjoo.
Os prazeres espirituais, por outro lado, quando não possuídos são desprezados, mas, quando possuídos, mais são desejados.
Esse servo que foi enviado, interpreta São Cirilo, é o próprio Cristo, que, sendo por natureza Deus e verdadeiro Filho de Deus, esvaziou-se e assumiu a forma de servo.
Mas foi enviado na hora da ceia. Pois não no princípio o Verbo assumiu nossa natureza, mas nos últimos tempos. E acrescenta: “porque todas as coisas já estão preparadas”, pois o Pai preparou em Cristo os bens concedidos ao mundo por meio d’Ele: a remissão dos pecados, a participação no Espírito Santo, a glória da adoção filial. A esses, Cristo convidou pela pregação do Evangelho.
No entanto, todos começam a escusar-se, pois segue-se: “E começaram todos igualmente a se escusar.” Eis que um homem rico convida, e os pobres apressam-se a vir. Somos convidados ao banquete de Deus, e nós nos escusamos, observa São Gregório.
Houve três escusas: “O primeiro disse-lhe: Comprei um campo e preciso ir vê-lo.”
O campo comprado representa o domínio. Portanto, o orgulho é o primeiro vício repreendido. Pois o primeiro homem quis dominar, não querendo ter um mestre.
Ou, pelo campo se entende os bens do mundo. Por isso, sai para vê-lo quem pensa apenas nas coisas exteriores.
Recorda Santo Ambrósio que Nosso Senhor disse em outro lugar: “Vende tudo o que tens e segue-Me.”
Outro convidado também se escusou: “Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las.”
Reflete Santo Agostinho que as cinco juntas de bois representam os cinco sentidos da carne: nos olhos a visão, nos ouvidos a audição, nas narinas o olfato, na boca o gosto, e em todos os membros o tato.
Mas o jugo (ou junta) de bois é mais claramente visível nos três primeiros sentidos: dois olhos, dois ouvidos, duas narinas; mas não somente, pois também temos duas mãos e dois lábios.
Os bois lavram a terra, e os homens afastados da fé, entregues às coisas terrenas, recusam-se a crer em qualquer coisa que não percebam pelos cinco sentidos do corpo. “Não creio em nada que não veja.” Se esse fosse nosso pensamento, seríamos impedidos de participar da ceia por essas cinco juntas de bois. Mas, para que entenda que não é o deleite dos cinco sentidos que atrai e dá prazer, mas que se indica certa curiosidade, ele não diz: “comprei cinco juntas de bois e vou alimentá-las”, mas sim “vou prová-las”.
São Gregório Magno faz uma observação importante. Aquele que por causa de seu campo e o outro que, para experimentar suas juntas de bois, se escusam do banquete de seu convidador, misturam em sua escusa palavras de humildade, pois dizem “rogo” e então recusam a vir, a palavra soa como humildade, mas a ação é orgulho.
No entanto, o último disse: “Casei-me com uma mulher e por isso não posso ir.”
Ele diz: “não posso ir”, porque a mente humana, quando se degenera para os prazeres do mundo, torna-se fraca para atender às coisas de Deus, diz São Basílio.
Embora o matrimônio seja bom e instituído pela Divina Providência para a geração de filhos, alguns nele buscam não a fecundidade da prole, mas a lascívia do prazer.
São João, quando disse que “tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida”, começou do ponto onde o Evangelho terminou.
Concupiscência da carne: “casei-me com uma mulher”; concupiscência dos olhos: “comprei cinco juntas de bois”; soberba da vida: “comprei um campo.”
Mas, passando da parte para o todo, os cinco sentidos foram representados sob o nome dos olhos, que ocupam o lugar principal entre os cinco sentidos. Pois embora propriamente a visão pertença aos olhos, costumamos atribuir o ato de ver a todos os cinco sentidos.
Quem nunca disse: “deixe-me ver isso”, significando que queria provar a coisa pelos demais sentidos?
Diz-se que o Pai da Família irou-se. Não que a paixão da ira pertença à substância divina, mas uma operação semelhante àquela que em nós é causada pela ira é chamada de ira e indignação de Deus.
Assim, o Senhor da casa é dito ter-se indignado com os chefes dos judeus, e em lugar deles foram chamados homens retirados da própria multidão judaica, de espíritos fracos e impotentes.
Ele convida os pobres, os fracos e os cegos, ensina Santo Ambrósio, para mostrar que nenhuma fraqueza corporal exclui alguém do Reino dos Céus, e que é culpado de menos pecados quem carece de estímulos para pecar; ou que as enfermidades do pecado são perdoadas pela misericórdia de Deus. Por isso Ele envia às ruas, para que das vias largas venham para o caminho estreito.
Daí se segue: “Disse o servo: Senhor, está feito como ordenaste, e ainda há lugar.” Pois já haviam entrado muitos dos judeus, mas ainda havia lugar no Reino para a abundância dos gentios. Por isso acrescenta-se: “Disse o Senhor ao servo: Sai pelos caminhos e atalhos e força-os a entrar, para que se encha a minha casa.” Quando manda recolher os convidados dos caminhos e dos valados, procura um povo rústico, isto é, os gentios.
Aqueles, pois, que, abatidos pelas calamidades deste mundo, retornam ao amor de Deus, são forçados a entrar. Mas terrível é a sentença que se segue: “Pois vos digo que nenhum daqueles homens que foram chamados provará a minha ceia.”
Ninguém, pois, despreze o chamado, para que, se se escusar quando for convidado, não aconteça que, querendo depois entrar, não possa.
Peçamos todos os dias a graça da perseverança final, comungando diariamente se possível, para que sejamos nós do número dos que participarão da grande ceia da vida eterna.
Santo Tomás de Aquino. Catena Aurea: Commentary on the Four Gospels, Collected out of the Works of the Fathers. Volume III, Part 1: Gospel of St. Luke. Tradução de John Henry Newman. Oxford: J.H. Parker, 1841.