
Poucos documentos na história da Igreja possuem a delicadeza doutrinal da constituição apostólica Ineffabilis Deus, na qual o Papa Pio IX definiu solenemente um mistério guardado e celebrado desde os primeiros séculos: a Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria.
Longe de ser uma novidade teológica, este dogma foi apresentado pelo Papa como a revelação explícita de algo que a fé da Igreja sempre soube — ainda que de modo implícito — desde seu início.
Ao reler esse texto admirável, encontra-se detalhes da história de como Deus preparou, desde toda a eternidade, a Mulher por meio da qual o próprio Verbo se faria carne. Encontra-se a história de uma Tradição que, conduzida pelo Espírito Santo, reconheceu em Maria um privilégio único: ser preservada de toda mancha do pecado desde o primeiro instante de sua concepção.
Pio IX inicia lembrando o cenário grandioso no qual o dogma se insere: Deus, cuja misericórdia se estende de uma extremidade a outra e tudo governa com suavidade, viu desde sempre a ruína que o pecado de Adão traria à humanidade.
No mesmo instante em que permitiu a queda, revelou qual seria o remédio. O primeiro Adão cairia; o segundo Adão viria para restaurar tudo com maior esplendor.
Para essa restauração, Deus quis preparar uma Mãe; não uma mãe qualquer, mas uma mulher tão perfeitamente unida a Cristo que nela não haveria espaço para qualquer domínio do demônio. A maternidade divina exige a total correspondência entre a Mãe e o Filho; por isso, Deus enche Maria, desde o princípio, de uma tal plenitude de inocência e santidade que, depois de Deus, não se pode conceber maior.
Assim, a Imaculada Conceição não é um acidente na história da salvação, mas o princípio e único meio pelo qual recebemos a Encarnação do Redentor.
Exorcistas relatam que os demônios caíram em razão de um pecado específico que cada um cometeu, mas que todos caíram em cooperação com o pecado de Lúcifer, que se referia ao Cristo (ou seja, à Encarnação e à Concepção Imaculada da Mãe de Deus).
A força da definição dogmática nasce de um fato incontestável: a Igreja sempre creu na Imaculada Conceição, mesmo antes de formular o dogma explicitamente. o Papa Pio IX recapitula séculos de história:
- A liturgia, que é sempre a guardiã segura da fé, venerava a Conceição de Maria como realidade santa e singular.
- Os papas, desde a Idade Média, incentivaram a festa, aprovaram ofícios próprios, concederam indulgências e defenderam energicamente a doutrina.
- As universidades, as ordens religiosas e os teólogos, dos mais antigos Padres às escolas medievais, e sustentaram e aprofundara essaa verdade mariana.
- O Concílio de Trento, ao definir que todos os homens nascem com o pecado original, fez questão de excluir expressamente a Bem-Aventurada Virgem Maria dessa condição. Não a explicou naquele momento, mas deixou clara a tradição que a cercava.
O Papa mostrou assim que a definição de 1854 não inventou nada: ela proclamou o que toda a Igreja já cria e vivia. Um dos pontos mais interessantes do documento é a descrição de como, ao longo dos séculos, os pontífices defenderam a Imaculada Conceição de ataques teológicos, impondo até censuras e proibições a quem tentasse negar o privilégio mariano.
Um erro sobre a Virgem Maria sempre ecoa em um erro sobre o Cristo. Se Cristo é verdadeiramente o novo Adão sem pecado, sua Mãe deve ser a nova Eva, totalmente livre do domínio do inimigo. Negar isso seria reduzir o alcance da Redenção e desfigurar o plano divino.
Ineffabilis Deus permite ao leitor fazer uma verdadeira peregrinação pela Patrística. Ali se vê como os primeiros cristãos contemplavam, nas páginas da Escritura, figuras e profecias que apontavam para a pureza singular da Mãe do Salvador:
- A Arca de Noé, que salvou a vida na terra do dilúvio.
- A sarça ardente, que queimava sem se danificar.
- A torre inexpugnável diante do inimigo.
- O jardim fechado, protegido de toda corrupção.
- A cidade de Deus, toda repleta de glória.
Os Padres da Igreja interpretam o protoevangelho ("Porei inimizade entre ti e a mulher", Gn 3,15) não como uma metáfora, mas como uma profecia real: Cristo e a Virgem Maria estão unidos numa mesma e perfeita inimizade contra o demônio. E uma inimizade perfeita não admite concessões, nem mesmo por um instante.
Se Cristo é totalmente santo, Maria, sua Mãe inseparável, deve ser totalmente imaculada. Um dos argumentos mais belos e constantes na Tradição é o contraste entre Eva e Maria:
- Eva, ainda virgem e inocente, caiu pela sedução da serpente ao conversar com esse que se desfaça de anjo de luz, e tomando o fruto de uma árvore, deu a morte a todos os seus filhos.
- Maria, também virgem, inocente e cheia de graça, não somente resistiu, mas esmagou a cabeça do inimigo com seu “fiat”. Ela entregou o fruto que, sim, era seu à árvore da Cruz, e sendo constituída Mãe dos homens, deu a todos os seus filhos a vida da graça que foi merecida por Seu Filho na Redenção.
A Imaculada Conceição é o selo dessa vitória desde o primeiro instante de sua existência.
Em um mundo que relativiza o pecado e perde o senso da graça, a Imaculada Conceição aparece como um farol. Ela lembra ao católico que a graça é mais forte que o pecado; que Deus perdoa, Ele previne, protege e transforma; e que a Virgem Santíssima é o ícone da humanidade restaurada, a prova de que a obra de Cristo é perfeita e maravilhosa.
Quando Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, pronunciou as palavras que selaram o dogma — “Declaramos, pronunciamos e definimos…” — não fez apenas um ato jurídico. Ele deu voz, de maneira definitiva, à fé da Igreja inteira: Maria, desde o primeiro instante de sua concepção, por graça singular de Deus e em vista dos méritos de Jesus Cristo, foi preservada de toda mancha do pecado original. Assim ele escreveu:
Por isto, depois de na humildade e no jejum, dirigirmos sem interrupção as Nossas preces particulares, e as públicas da Igreja, a Deus Pai, por meio de seu Filho, a fim de que se dignasse de dirigir e sustentar a Nossa mente com a virtude do Espírito Santo; depois de implorarmos com gemidos o Espírito consolador; por sua inspiração, em honra da santa e indivisível Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica, e para incremento da religião cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a Nossa, declaramos, pronunciamos e definimos:
Doctrinam, quæ tenet, beatissimam Virginem Mariam in primo instanti suæ conceptionis fuisse singulari omnipotentis Dei gratia et privilegio, intuitu meritorum Christi Jesu Salvatoris humani generis, ab omni originalis culpæ labe præservatam immunem, esse a Deo revelatam atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam.
(A doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.)
Portanto, se alguém — que Deus não o permita — deliberadamente entende de pensar diversamente de quanto por Nós foi definido, conheça e saiba que está condenado pelo seu próprio juízo, que naufragou na fé, que se separou da unidade da Igreja, e que, além disso, incorreu por si, ipso facto, nas penas estabelecidas pelas leis contra aquele que ousa manifestar oralmente ou por escrito, ou de qualquer outro modo externo, os erros que pensa no seu coração.
PAPA PIO IX. Ineffabilis Deus: bula sobre a Imaculada Conceição. Roma: Santa Sé, 08 dez. 1854.